A Igreja precisa da comoção que o Sínodo sobre a família causou

 “Durante mais de 30 anos e dois papados, os católicos foram condicionados a aceitar, muito de má vontade, que era inalterável o fato de que o debate sobre certos tópicos, certas abordagens pastorais, certas questões relacionadas à vida contemporânea e, especialmente, à sexualidade estavam proibidos para sempre na comunidade e que, certamente, jamais iriam ocorrer entre os líderes da Igreja”, constata o editorial de National Catholic Reporter

O editorial faz um apelo:

“Esforcemo-nos, usando a analogia dos terremotos como exemplo, para tentar explicar o que está acontecendo neste Sínodo e, por extensão, no papado de Francisco. A comoção bagunçada que hoje ocorre é um pequeno preço a pagar para se corrigir o curso de uma Igreja repleta de escândalos horríveis envolvendo sexo e dinheiro, uma instituição ossificada por um clericalismo destrutivo e chocantemente corrupto em seus mais altos níveis”.

Eis o editorial.

É difícil de se imaginar por que algum papa iria querer se envolver no processo sinodal se não fosse para discutir questões prementes da atualidade. É igualmente difícil imaginar um encontro de bispos convocados para debater assuntos importantes do momento com a expectativa de que eles não iriam levantar questões difíceis ou gerar desacordos entre eles mesmos.

Talvez seja porque o mundocatólico tenha chagado a supor o irracional de que a fase mais recente doSínodo dos Bispos extraordinário sobre a família não causaria tais reações fortes ao longo do espectro das expectativas.

Durante mais de 30 anos e dois papados, os católicos foram condicionados a aceitar, muito de má vontade, que era inalterável o fato de que o debate sobre certos tópicos, certas abordagens pastorais, certas questões relacionadas à vida contemporânea e, especialmente, à sexualidade estavam proibidos para sempre na comunidade e que, certamente, jamais iriam ocorrer entre os líderes da Igreja.

E, então, veio o PapaFrancisco. Este disse que tais regras e suposições não mais se aplicam, que o debate não seria censurado e que nenhum assunto ou questão iria ser tirado da mesa de discussões. Ele quis um debate completo, robusto. Os bispos do mundo aparentemente se entregaram a esta proposta. O debate valeria a pena somente na medida em que os católicos entendessem seus que líderes discordam, de fato, sobre assuntos importantes. Aqui é essencial ter em mente se tratar de uma discussão entre uma minúscula amostra da humanidade, tirada das circunstâncias ordinárias da vida e exclusivamente masculina e celibatária.

O que temos à frente é um ano até o encontro final desde Sínodo de duas partes. Este encontro, nos foi dito, será maior em número e mais diversificado do que o primeiro. Ele também vai ocorrer com o entendimento de que ninguém irá enfrentar a inquisição caso um líder (será que poderá haver “uma” líder?) levantar interrogações turbulentas e fazer publicamente uma crítica pungente sobre o processo do Sínodo, os outros bispos ou mesmo sobre o papa. Aguardamos, com esperança, ouvir por parte dos bispos americanos como eles planejam continuar o diálogo do sínodo, com qual amplitude eles pretendem consultar e incorporar o pensamento dos leigos sobre assuntos de matrimônio e família, e quem eles estarão enviando como representantes à sessão de 2015.

A conclusão inicial a partir do surpreendente documento provisório foi que a ala progressista da Igreja acabou se beneficiando neste encontro. Este documento, agora famoso, acolheu os homossexuais e sugeriu que a Igreja possa encontrar uma bondade nos relacionamentos homoafetivos, assim como naqueles que vivem juntos sem estarem casados e entre os divorciados e casados novamente.

No entanto, aqueles da ala direita que se encontram na posição incomum de discordar da linguagem e direção papal – e alguns de forma bastante dura – também se beneficiaram com a abertura de Francisco para debater e com a relutância aparente dele em dominar aqueles que dissentem. Dom Charles Chaput, arcebispo da Filadélfia, comparou aquilo que aconteceu no Sínodo até o momento a algo “do demônio”. Dom Thomas Tobin, da Diocese de Providence, no estado de RhodeIsland, EUA, disse que o Sínodo fora “bastante protestante”. E o cardeal Raymond Burke, arquiconservador, pelo menos indiretamente culpou a falta de clareza do Papa Francisco em fazer mal à Igreja.

Um colunista do jornal The New YorkTimes foi mais longe: urgiu os “conservadores” a agirem abertamente caso Francisco continue se encaminhando para aquilo que chamou de um “precipício”. Pode-se imaginar um cardeal ou dois lamentando sobre uma tal sugestão anticatólica e antipapal e exigindo um pedido de desculpas. Parece, no entanto, que a indignação hierárquica é destacadamente elástica, que sua aplicação é dependente da ideologia que se tem – e do papa.

Talvez, no final do processo deste Sínodo, alguns católicos se tornem menos medrosos para com a palavra “mudança” e mais realistas sobre o quanto a Igreja e os seus ensinamentos mudaram ao longo dos séculos. (Devemos voltar aos antigos ensinamentos sobre a escravidão; mulheres como homens mal formados; judeus como perpetradores do deicídio; os males da usura; ou, Deus nos ajude, sobre a natureza do próprio universo?)

Do outro lado da divisão na comunidade, os progressistas ficaram animados – com as qualificações – a respeito do que é, inegavelmente, uma nova direção para a Igreja. Neste segmento da comunidade, alguns gostariam de uma carta eclesiástica equivalente à do líder Martin Luther King Jr.: “A Carta da Prisão de Birmingham”. Basta, dizem estes. Basta de incrementalismo e da necessidade de leituras infindáveis das folhas de chá do Vaticano para se discernir o menor indício dos novos padrões.

Nada do tipo desta correspondência virá à tona; e, se vier, não terá lugar para onde ir. Uma das realidades paralelas para as mudanças na Igreja é que, paradoxalmente, não existe nenhum mecanismo para implementá-las. Elas são disfarçadas, às vezes tortuosamente, como estando em continuidade com tudo o que veio antes.

O geólogo francês Xavier Le Pichon escreve que os sistemas que tornam demasiado rígidos evoluem através de uma “comoção”; as placas da Terra se chocam e se quebram, e então novas formações ocorrem. Assim foi com os sistemas humanos, escreve ele. Portanto, esforcemo-nos, usando a analogia dos terremotos como exemplo, para tentar explicar o que está acontecendo neste Sínodo e, por extensão, no papado de Francisco.

A comoção bagunçada que hoje ocorre é um pequeno preço a pagar para se corrigir o curso de uma Igreja repleta de escândalos horríveis envolvendo sexo e dinheiro, uma instituição ossificada por um clericalismo destrutivo e chocantemente corrupta em seus mais altos níveis.

Francisco, hoje sabemos, passou por uma conversão pessoal que não é diferente das mudanças que ocorrem no momento na Igreja em geral. O autoritário transformou-se, e muito, quando encontrou a realidade da vida nas favelas de Buenos Aires, onde existem poucas famílias perfeitas e onde as construções teológicas satisfatórias da academia estão longe de se encontrar. O príncipe que abandona a si próprio para tais circunstâncias é humilhado. Ele aprende via formas que nenhum seminário pode ensinar.

Fonte – IHUSINOS

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